Preocupações concorrenciais e regulatórias
O novo serviço de pagamentos do WhatsApp, anunciado em 15 de junho, foi suspenso cautelarmente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e pelo Banco Central (Bacen) no final do dia de ontem (23 de junho).
A operação, idealizada pelo Facebook (controlador do WhatsApp) e Cielo, empresa líder no segmento de pagamentos eletrônicos, habilitaria o WhatsApp a uma nova função de pagamento dentro da plataforma de mensagens. Consumidores e comerciantes poderiam realizar pagamentos pelo WhatsApp usando cartões cadastrados das bandeiras Visa e Mastercard, com intermediação da Cielo, sem utilização de POS (maquininhas). Ou seja, poderiam ser feitas apenas pelo celular. Inicialmente, o serviço estava previsto para atender a carteira de clientes dos bancos Nubank, Sicredi e Banco do Brasil.
De acordo com a Superintendência Geral do Cade (SG-Cade), a suspensão cautelar foi adotada sob a justificativa de que, caso o negócio fosse concretizado sem a análise de seus efeitos concorrenciais pelo Cade, poderia causar danos de difícil reversão. Vale mencionar que a nota técnica que fundamenta o despacho estabelecendo a medida cautelar não dispõe sobre a obrigatoriedade da notificação prévia do acordo entre Facebook e Cielo ao Cade, mas deixa claro que “a existência do perigo da demora torna-se iminente a necessidade de preservar as atuais condições de concorrência, sob pena de se permitir que possa ocorrer grave lesão e desequilíbrio no ambiente competitivo brasileiro. (sic)”
Como argumento central da decisão, a SG-Cade considerou que a Cielo possui elevada participação no mercado nacional de credenciamento de captura de transações, e que o WhatsApp possui uma base de milhões de usuários no Brasil, o que poderia garantir na sua entrada um poder de mercado significativo. Aliando as duas pontas, haveria um risco de fechamento de mercado e de elevação de barreiras significativas à entrada de novos concorrentes. Levantou-se também preocupações de verticalização quanto à participação de grandes bancos, como Banco do Brasil e Bradesco – acionistas da Cielo – no negócio proposto (ainda que indiretamente, no caso do Bradesco), o que poderia levar a distorções no mercado bancário.
Por fim, a SG-Cade também determinou a instauração de procedimento administrativo para apuração de ato de concentração (APAC), para determinar se haveria a obrigatoriedade de notificação prévia do acordo entre as partes ao Cade e, em caso afirmativo, se teria sido configurada a prática de gun jumping. As penalidades por gun jumping podem gerar nulidade de operações, instauração de processo administrativo e imposição de multas que podem chegar a 60 milhões de Reais.
Do ponto de vista regulatório, tendo em vista que o acordo entre Facebook e Cielo não atraía a competência de regulação do Bacen, por possuir caraterísticas, em tese, de um arranjo de pagamento não integrante do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), nos termos da Circular nº 3.682/2013, a diretoria colegiada do Bacen, em sessão realizada ontem (23 de junho), alterou o art. 3° da referida circular, por meio de nova normativa (Circular n° 4.031/2020), determinado que:
“art. 3º Caso o Banco Central do Brasil considere que determinado arranjo oferece risco ao normal funcionamento das transações de pagamentos de varejo com base no parâmetro definido no art. 6º, parágrafo único, inciso VI, da Resolução nº 4.282, de 4 de novembro de 2013, decidirá por sua integração ao SPB e oficiará seu instituidor sobre a decisão.”
Com a nova previsão, em lugar da mera comunicação da decisão pelo Bacen, como previsto na redação anterior da Circular nº 3.682/2013, o acordo entre Facebook (WhatsApp) e Cielo passará a ser, ao que tudo indica, um arranjo integrante do SPB e, portanto, sujeito à supervisão e às regulamentações da autoridade.
Importante mencionar que, o critério de classificação de um arranjo não integrante do SPB oferecer risco ao normal funcionamento das transações de pagamentos de varejo, são os possíveis “efeitos do funcionamento do arranjo de pagamento sobre o mercado”, conforme previsão do art. 6º, parágrafo único, inciso VI, da Resolução nº 4.282/13 do Bacen.
Com a suspensão do acordo entre Facebook e Cielo, as transações de pagamento via WhatsApp ficam suspensas no Brasil, primeiro país onde seria testada a solução, conforme anúncio do Facebook em 15 de junho.
A atuação conjunta do Cade e do Bacen, no tocante à avaliação do acordo, tem como amparo legal o Ato Normativo Conjunto n°1/2018 que determina, entre outras questões, que ambas as autoridades reunir-se-ão, sempre que necessário, para:
“I – discussão de temas que possam ensejar ação normativa com impactos concorrenciais em mercados e instituições submetidas à supervisão ou vigilância do BCB; e
II – cooperação técnica no âmbito de processos administrativos no controle de atos de concentração e na apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições supervisionadas pelo BCB, inclusive com a participação destas.”
A partir das medidas tomadas, tanto Facebook como Cielo deverão apresentar informações e detalhes sobre o acordo que firmaram perante o Cade, sob pena de violação à ordem econômica, bem como protocolar a documentação necessária ao funcionamento de arranjos de pagamento integrantes do SPB perante o Bacen, também sob pena de multa cominatória e à apuração de responsabilidade em processo administrativo sancionador, nos termos da Lei n° 13.506/2017.